Conto 03 - Uma Vez - Vitoria Neves


Uma Vez



   Eu me lembro da primeira vez que me apaixonei por você.
   Você estava atravessando a rua, sob aquele céu cinzento, com o frio gélido acariciando seu pescoço desnudo, sua roupa feita de crochê, pois você era a favor do artesanato, principalmente aquele artesanato feito pelos idosos do centro de convivência que ficava na cidade vizinha. Mas você nunca se importou de ir até lá, muito pelo contrário, você até gostava.
   Eu vi você andar pela calçada, usando seus fones de ouvidos cor de rosa que escorregavam para dentro de seu capuz surrado, feito de lã.
   Eu observei enquanto os flocos de neve caiam ao seu redor, formando pequenos cristais cintilantes que adornavam sua roupa.
   E também vi, quando você parou subitamente em frente a uma cafeteria qualquer, com o brilho das luzes piscantes que enfrentavam a vitrine e o resto da rua também. Você parou por sentir o cheiro do café, dos bolinhos e da gordurosa chapa de grelhar.
   Foi quando eu juntei, finalmente, toda a informação que eu precisava sobre você, fui em direção ao café, que ao meu ver era mais uma espelunca naquela cidade pequena e abandonada pela diversão e o senso de humor.
   Você, obviamente, não me viu entrar e sentar no banco acolchado atrás de você. Eu quase podia tocá-la. Eu sentia o cheiro de jasmim que perfumava seus cabelos, podia até imaginar o salgado do seu sangue borbulhando em suas veias, sentia o calor que irradiava de você, porém, tudo o que você via era a xícara fumegante de café que a garçonete magricela, com um cabelo tingido de preto e muitos piercings no rosto, acabara de trazer pra você.
   Dois cubos de açúcar e um pouco de creme. Foi o que você colocou no café. Porém, como eu estava ficando impaciente de somente observar você, me levantei e sentei no banco acolchoado a sua frente. Estávamos finalmente frente a frente, e tudo o que você disse foi:
  - Desculpe... Posso ajudá-lo?
  Ah, se você pudesse ao menos pensar em quantas maneiras diferentes você poderia sim me ajudar. Ajudar a conter aquilo que eu mesmo pouco entendia, que se remexia com selvageria dentro de mim, acendendo aquela sensação estranha, fora de controle.
  - Depende do que você está disposta a fazer - respondi, já me sentindo idiota pela abordagem incisiva. Mas, vi o lampejo de excitação que passou pelos seus olhos. Porém, tão rápido quanto apareceram, assim se dissiparam, e você sorriu, como se aquilo fosse uma piada.
   E aí começou a nevar. Neve caía por todo lado, lá fora. Você olhou pela janela, quase hipnotizada com o brilho gelado que caia, observava, e por um momento esqueceu que eu estava ali, esqueceu que eu era um estranho, e buscou minha mão através da mesa enquanto olhava para o lado de fora, e a segurou.
   Você sempre fazia isso nas noites de Natal. Você acolhia qualquer um que parecia estar perdido e vazio, solitário. E o acolhia. E era por isso que eu estava ali. Eu te conhecia.     
   - Você quer sair daqui? - perguntei.
   Ela olhou para mim como se eu fosse louco e riu.
  - O que te faz pensar que eu gostaria de ir para outro lugar? - respondeu ela. Seus lábios eram rosados, mas não tão rosados iguais suas bochechas estavam naquele momento.
   Eu somente a olhei. Por um segundo me permiti olhá-la, de frente, tão perto.
   Preciso me concentrar. Estou perdendo o foco. Pensei.
   - Pois é Natal, e você está sozinha. - Respondi, tentando não parecer desesperado. - E, pode parecer loucura, mas eu sinto que te conheço.
  Você suspira, e olha para nossas mãos, ainda juntas. E eu sei, imediatamente que ela sente a mesma coisa.
   - Você poderia ao menos me dizer seu nome? -  você pergunta, quando solta minha mão para pegar sua bolsa e pagar pelo café.
   - Deixe que eu pago. - digo. E coloco qualquer nota que tenho no bolso.
   - Uau. Você tem certeza que vai pagar cem dólares por um café e um muffin? - Você ri.
   Apenas dou de ombros e acompanho você até o lado de fora da lanchonete. Fecho os olhos quando uma onda gelada, e flocos de neve me atinge. Aperto o casaco contra o corpo, e você faz o mesmo.
   - Você vem sempre aqui? - Você pergunta quando eu lhe ofereço o braço e vamos passando pelas lojas fechadas, me lembrando de crianças adormecidas após uma tarde brincando o dia todo no parque.
  - Hm... Não costumo sair de casa. Acabo de me mudar. - respondo. - E você? Vem sempre aqui?
  - Está me perguntando se sempre saio com homens que não conheço? - Você ri. Sua risada é linda.
   Eu fico sem graça e você percebe. Por isso me da um empurrãozinho.
   Caminhamos até o parque. Conversamos sobre tudo. Religião, política, música. Tudo. Você tinha uma opinião formada sobre tudo o que conversávamos. E não me lembro de ter escutado você se esquivar de uma conversa.
   Você era corajosa. E eu amava isso em você.
   Quando chegamos ao parque, entramos no velho coreto, aonde eu convenci você a dançar comigo. Nós dançamos sem música. Eu sentia aquela familiaridade com você, e você sentia o mesmo. Nós não queríamos que aquele momento acabasse.
    E foi, naquela noite de Natal, em que eu me apaixonei por você.



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